Mortes por Covid-19 no Estado superam o total de óbitos violentos em 2019. - Foto: Camila Lima
O novo coronavírus ataca em silêncio, é invisível, mas deixa um rastro de morte. No Ceará, os óbitos por Covid-19 registrados até o último boletim epidemiológico da Secretaria da Saúde (Sesa), às 19h27 de ontem, superam todos os Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLIs) de 2019.
Na balança, estão 12 meses de letalidade no âmbito da segurança contra 80 dias de uma grave doença que virou rotina. Ao longo do último ano, 2.257 pessoas perderam a vida no Estado por conta de homicídios, latrocínios (roubos seguidos de morte) e lesões corporais com óbito. Os mortos pela infecção viral são 3.504.
Esse é o retrato da crise sanitária global em uma zona com altas taxas de violência. Por si, as 24,7 mortes por 100 mil habitantes do período passado já configuram uma epidemia na segurança: para as Organizações das Nações Unidas (ONU), o teto do índice é 10. Assim, o conflito está instaurado e a única refém é a população cearense, estimada em 9,1 milhões. No caso da Covid-19, muda ainda a despedida. As vítimas devem partir sem cerimônia de sepultamento e com caixões lacrados, sob risco de contaminação.
“Nós fizemos um velório virtual. Amigos e irmãos, todos acessamos um aplicativo e ficamos relembrando a vida dele, cantamos, oramos, falamos de momentos. Ele era muito alegre, gostava de churrasco e tinha um monte de cachorro. No dia seguinte, foi o velório, só podem ir 10 pessoas, mas eu digo para todos que a dor é grande porque essa doença não nos deixa velar, ver a pessoa, nem se despedir”, afirmou a contadora Aldair Barros, irmã de uma das milhares de vítimas no Ceará.
A leitura mais precisa então é longe de números, mas nomes. Como o próprio enredo de Salomão Rodrigues, de 63 anos, pessoa disposta a enfrentar a doença como motorista do Samu em uma unidade de saúde de Maracanaú. E a missão foi bem executada, até o momento de partir: dia 13 de maio.
“A gente dizia para não ir por conta da idade, alguns problemas de saúde que o deixavam no grupo de risco, mas ele disse que tinha de ajudar, não podia parar logo na pandemia. E sempre que voltava para casa, falava que companheiros de trabalho estavam infectados, até médicos. Não tinha jeito, Salomão foi muito relutante, a vida dele foi dedicada ao serviço de saúde”, finalizou.
Capital em foco
O parâmetro de letalidade do novo coronavírus é ainda mais acentuado quando se compara com o ano vigente. Ao longo dos três meses anteriores de 2020, período de manifestação da doença no Estado, foram catalogados 1.114 CVLIs, óbitos que representam 35% dos de Covid-19.
Na liderança das somatórias está Fortaleza. A relação da Capital com a violência é mais antiga e não menos letal. Neste ano, por exemplo, a população atravessou nos primeiros dias um motim de policiais e bombeiros militares. Até março, os Crimes Violentos Letais Intencionais cresceram 98,7%.
A escalada é acompanhada agora pela pandemia. Em busca de medidas restritivas e sob isolamento social rígido, o “lockdown”, a cidade é o epicentro da contaminação: 25.344 infectados e 2.277 óbitos.
No todo, o Ceará realizou 128.753 exames diagnósticos para SARS-CoV-2. Os casos confirmados são 54.683, enquanto o de pacientes recuperados está em 35.623.
“Se concentra em dois meses uma mortalidade que, pela violência, caberia no ano inteiro. Isso é dramático para a população. A morte por coronavírus deixa insegurança na família inteira, as pessoas se perguntam se estão contaminadas”, avalia o médico sanitarista Manoel Fonseca, especialista em epidemiologia. Ele observa que, para os familiares das vítimas, é gerada uma carga psicológica muito forte.
Fonseca considera que o comparativo motiva “uma preocupação extraordinária”, uma vez que as mortes causadas pela doença alcançam todas as faixas etárias. “O pior é que essa tendência não se acabou. Alguns estudos que estão avançando mostram que a mortalidade vai até o fim de agosto, e só vão reduzir em setembro. Nós vamos superar qualquer indicador até lá”.
Perfil dos óbitos
O Atlas da Violência de 2019, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, descreveu o indivíduo do país com mais probabilidade de morte violenta intencional como um homem jovem, solteiro, negro, com até sete anos de estudo e que esteja na rua entre 18h e 22h.
As características de amplitude nacional se replicam em solo alencarino quando se trata de CVLIs. Em comparativo com a Covid-19, no entanto, o perfil é mais abrangente, apesar da concentração de casos ser em localidades com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
A maioria das vítimas no Estado se insere na faixa etária acima de 70 anos. Até o último boletim epidemiológico semanal da Secretaria de Saúde do Ceará (Sesa), divulgado na terça-feira passada (26), a letalidade nestas pessoas era maior 32,9% para homens, e 23,5% no sexo feminino.
O índice se contrapõe aos de maior incidência de casos. O documento aponta a maioria (67,6%) nas faixas etárias adultas, frequentemente, sendo as economicamente ativas. O que não significa imunidade, vale ressaltar. O nicho corresponde a 12% das mortes.
E a estatística pouco é relevante quando uma pessoa parte. A exemplo do cantor, compositor e trovador cearense Evaldo Gouveia, que morreu na sexta-feira (29) por complicações da Covid-19.
“Evaldo encantou-se de vez, depois de cantar cada pedaço de nossas vidas, de nosso chão e do coração de nossa gente. Parafraseando sua primeira criação, ‘deixemos que ele se vá’, ficando em nossos corações a gratidão e a eterna admiração”, afirmou o prefeito Roberto Cláudio (PDT).
Tributos se somam aos famosos, anônimos, enfim, cearenses. A taxa de letalidade é de 6,4. O dado é diferente de mortalidade pois afere apenas o saldo de infectados e mortos, sem considerar o número geral dos residentes.
No reflexo de infraestrutura social, os suscetíveis à contaminação são todos. Apesar de o novo coronavírus evoluir com mais frequência para formas graves em pessoas com idade avançada, doenças como diabetes e hipertensão, além de câncer, problemas respiratórios, obesidade ou tabagismo.
“A Covid é um vírus e os primeiros cinco dias dão indícios se o paciente vai evoluir ou não para fase de gravidade. É quando pode criar o problema inflamatório e complicar o pulmão, com pacientes com o órgão comprometido em 70%. É um processo rápido. Mas o crescimento e a evolução ao óbito dependem de muitos fatores, do quadro de risco, da imunidade própria, da quantidade de vírus e do tratamento adequado”, alerta o infectologista Anastácio Queiroz.
No Ceará, o tempo médio de internação do paciente acometido com a doença é de 7,68 dias. A taxa de ocupação das Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) do Estado é de 84,91%.
Diário do Nordeste