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Falta de saneamento básico em Juazeiro do Norte sobrecarrega mulheres
Em Juazeiro do Norte, a luta por saneamento básico revela a sobrecarga invisível das mulheres, que convivem com o impacto de um sistema de esgoto que hoje não alcança suas residências, afetando diretamente o seu tempo gasto a mais no trabalho doméstico.
Bruna Santos
Quanto tempo a falta de saneamento tira de uma mulher? Foto: Bruna Santos

Em Juazeiro do Norte, a falta de saneamento básico revela a desigualdade que atinge principalmente as mulheres. Apesar de ser uma das cidades da região do Cariri atendidas pela Parceria Público-Privada (PPP) de esgotamento sanitário entre a Ambiental Ceará e a Cagece, o município ainda enfrenta uma grande defasagem na cobertura de rede coletora de esgoto. 

Hoje, apenas 41,42% dos imóveis têm acesso à rede, o que resulta em uma grande parcela da população, em sua maioria mulheres, vivendo em condições desfavoráveis. Porém, o problema gera outras consequências: a ausência de rede de esgoto impacta muito mais que a saúde e educação, ela tem consequências mais profundas no trabalho doméstico não remunerado das mulheres, que hoje tem suas vidas atribuídas aos cuidados da casa e da família.

E se ela tivesse mais tempo?

No bairro José Geraldo da Cruz, um dos que tem menor número de imóveis utilizando o serviço de coleta e tratamento de esgoto, encontramos Dona Penha, de 58 anos. Ela é uma das muitas mulheres que enfrentam o desafio adicional de limpar constantemente sua casa para evitar o mau cheiro causado pela falta de ligação. “Aqui só o que incomoda mesmo é o mau cheiro quando vem o ar de lá, né? A gente sai. Aqui a gente jogando água, tampando, bota um pedaço de cerâmica, diminui mais o mau cheiro“, afirma.

Por conta da condição de saúde de Dona Penha, sua filha Elisângela Santos, de 36 anos, apoia na manutenção da limpeza da casa, se deslocando diversas vezes na semana para dar o suporte necessário. Além do cuidado com a mãe, ela apoia seu pai, que também é doente, e seu filho que tem transtorno do espectro autista. Sem melindres, afirma que sua rotina é exaustiva. É muito cansativo pra mim, porque tem meu pai que é doente. Minha mãe é doente. Aí tem ele [o filho] que é autista. Eu também sou doente, que tomo remédio controlado. Mas sempre eu mantenho as coisas limpinhas enquanto eu não tomo o remédio. Eu sou assim, faço tudo. Depois que eu tomo, já não sou mais ninguém, não faço mais nada, já me aquieto. Mas a rotina é cansativa, muito cansativa“, desabafa.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua 2022, as mulheres dedicam, em média, 21,3 horas semanais aos afazeres domésticos, enquanto os homens gastam 11,7 horas. A diferença de 9,6 horas a mais que as mulheres passam em atividades como cuidar da casa, lavar roupa, cozinhar e cuidar de pessoas, é um reflexo da divisão desigual do trabalho doméstico e de cuidado.

 

Família utiliza prato de cerâmica para tapar o odor do esgoto. Foto: Bruna Santos

 

Segundo Elisângela, sua rotina de trabalho doméstico é de, pelo menos, 7 horas, por dia. “Começo às 5h da manhã aqui [na casa da mãe] e termino 8h, depois vou pra minha casa 11h e lá termino 12h. Mas lá a gente não sente mau cheiro porque sempre jogo produto, ácido muriático “, diz. 

Para a professora de Direito da URCA e mestranda em Sociologia pela Universidade Federal Fluminese (UFF), Cristiane Lins, a falta de saneamento básico acentua a divisão sexual do trabalho. “A gente está falando de maior qualidade de vida no âmbito das comunidades periféricas uma vez que há uma estrutura bacana de saneamento básico, evitando aí que as pessoas fiquem doentes, principalmente as crianças que têm menor imunidade. E dessa forma, poupando as mães, poupando as mulheres que estão na função do cuidado, que é o que ainda nós vemos. A mulher ainda está predominantemente na função do cuidado, e isso tiraria a sobrecarga que recai sobre os ombros das mulheres”, explica.

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), a ausência de acesso adequado a serviços de esgoto está intimamente ligada ao aumento de doenças infecciosas, especialmente as diarreicas. Em Juazeiro do Norte, somente este ano, foram registrados 1431 casos de diarreia em crianças, uma das doenças mais comuns associadas à falta de saneamento básico. Entre o quantitativo, 835 crianças de 1 a 4 anos foram afetadas. Outros 596 diagnósticos são de crianças entre 5 a 9 anos, conforme informações da Secretaria de Saúde do Município. O questionamento é: as mulheres tiram de si nesses momentos tempo que seria para se dedicar a outras atividades do seu interesse para, novamente, cuidar de alguém que foi afetado pela falta de saneamento?

Para Cristiane, que também constrói o movimento de mulheres no Cariri, sim.  “Então, se alguém da casa adoece, principalmente as crianças, que são as que vão estar mais suscetíveis a adoecer, por questões mesmo de imunidade, são as mães dessas famílias que vão ter que faltar o seu trabalho, que vão ter que remanejar os seus horários, ou então vão, na própria rotina doméstica, se elas forem só da casa,  vão ter que demandar muito mais os cuidados dessas crianças”.

Quando questionadas se o acesso a rede de esgoto facilitaria suas vidas, dando mais tempo para descanso, Dona Penha e Elisângela afirmaram ‘com certeza’. Entre o que imaginam com o tempo a mais está conversar com os conhecidos e descansar.

Dona Penha e Elisângela reclamam do mau cheiro que afeta a residência com frequência. Foto: Bruna Santos

 

Tem como ganhar tempo?

Desde 2023, a Ambiental Ceará tem implantado redes coletoras de esgoto em Juazeiro do Norte, favorecendo diversos bairros com a infraestrutura necessária para a coleta e tratamento do esgoto. No entanto, a dificuldade em garantir a adesão ao sistema continua sendo um obstáculo.

Tadeu Bezerra, gerente de operações da Ambiental Ceará, explica que a população de Juazeiro do Norte, como em outras partes do Brasil, enfrenta um problema cultural causado por anos sem o direito básico. “A população passou muito tempo convivendo dessa forma, então, meio que se torna normal aquilo. O saneamento básico no país inteiro é muito defasado. Não é à toa que a gente está nos últimos lá da tabela. Agora, o país está começando a mudar essa realidade”, aponta.

Hoje, o município possui 36.135 imóveis conectados ao sistema de esgoto, beneficiando mais de 119 mil pessoas. No entanto, a cidade contabiliza mais de 19 mil imóveis que têm acesso à rede, mas não estão conectados a ela. 

 

Bairros com menor número de imóveis utilizando o serviço de coleta e tratamento de esgoto. Fonte: Ambiental Ceará.

 

Para a superação de um dos problemas, o gerente da Ambiental aponta que é preciso que as famílias façam a adesão da rede, através da Central de Atendimento da Cagece, no número 0800 275 0195, nas localidades em que já tem a encanação disponível.A obra em si, de fato, é o mais fácil. Você fala assim, mas por que está dito o mais fácil? Pelo seguinte sentido, tem profissionais que manjam desse conhecimento técnico gigantesco, só que a obra, de fato, só vai ter a sua funcionalidade se eu, como cliente que estou na rua lá, fizer adesão a esse serviço,  ou seja, me interligar àquela obra que foi feita, para ela ter efetividade. Porque, senão, vai ter o cano passado no meio da rua, a ligação disponível e eu continuo fazendo o lançamento do esgoto na sarjeta”, explica.

 

Impacto diário da não ligação à rede de esgoto para o meio ambiente. Fonte: Ambiental Ceará.

 

O caminho para melhorar a vida das mulheres, dando-as mais tempo para descanso e lazer, passa pela ampliação do acesso ao saneamento básico. A Ambiental Ceará, em parceria com a Cagece, é responsável  pela expansão da rede de esgoto, seguindo o que foi estabelecido pelo Novo Marco Legal do Saneamento Básico, sancionado em julho de 2020. 

A Lei 14.026/2020 estabelece a universalização dos serviços de saneamento até 2033, com a meta de garantir que até lá 99% da população brasileira tenha acesso à água potável e 90% tenha acesso à coleta e tratamento de esgoto. Com isso, novas possibilidades de melhoria se abrem especialmente para as mulheres mães de família. 

Segundo Lins, garantir que mais mulheres e famílias tenham acesso à rede de esgoto não deve ser uma mera formalidade. “Um investimento sério na promoção da infraestrutura de uma rede de transporte de qualidade, de uma rede de saneamento básico de qualidade e para todos, seriam duas políticas públicas que efetivamente trariam benefícios para a população de um modo geral, para as mães e mulheres que estão na função do cuidado e que pertencem às classes economicamente mais vulneráveis”.

Enquanto a infraestrutura de saneamento não alcança toda a população, sobretudo as mulheres, de Juazeiro do Norte, a Parceria Público-Privada concentra esforços em campanhas de conscientização para incentivar a adesão onde a rede de esgoto já está disponível. “Fizemos 13 mil visitas socioambientais só esse ano. O que são essas visitas socioambientais? É ir na tua residência e explicar o porque daquela obra que passou na frente da tua residência“, afirma Tadeu. No bairro José Geraldo da Cruz, por exemplo, 189 imóveis têm possibilidade de ligação imediata, mas permanecem desconectados.
Para famílias de baixa renda, a Tarifa Social da Cagece pode oferecer um alívio financeiro. Porém, segundo Lins, sem uma estratégia mais eficaz que combine acesso à informação, divisão do trabalho e investimentos, as desigualdades permanecerão enraizadas, afetando, sobretudo, as mulheres, que seguem arcando com o peso de uma estrutura que as deixa à margem.
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